terça-feira, 3 de abril de 2007

Site-specific Porto


Graffitti Sculpture
Granite hearts in the holes of the granite walls of Porto
2003
Porto, Portugal

“O olhar percorre as ruas como páginas escritas: A cidade diz tudo o que devemos pensar, faz-nos repetir o seu discurso, e enquanto julgamos visitar Tâmara limitamo-nos a registar os nomes com que ela se define a si mesma e todas as suas partes.
Como realmente é a cidade sob este denso invólucro de sinais, o que ela contém ou oculta, o homem sai de Tâmara sem tê-lo sabido.(...)
Ítalo Calvino, in “As cidades invisíveis”

Assim é o Porto, cidade Património da Humanidade. Os seus sinais são o seu próprio mapa feito de ruelas escuras e gastas pelo tempo. Um património que se gasta a cada instante e que se torna estimulante apenas aos olhos de turistas que calcorreiam a cidade, sem imagem de um antes, nem de um depois. Enquanto isso, os seus habitantes percorrem-na sem tempo, nem físico, nem psicológico, numa espécie de autismo que os faz ignorar uma vida para além do movimento frenético das ruas, das casas, igrejas, muros e pedras. A cidade muda segundo a especulação, com fortíssimos interesses económicos e como forma de chamar ainda mais turistas criando um cenário homogéneo, incaracterístico, impessoal, “o homem vê desaparecerem os seus elementos de identificação, o seu território, o seu sistema de relações. (...) Tal situação, cada dia mais consciencializada, explica que tantos se preocupem com a degradação do património(...). É ele próprio, o homem, que tem de reencontrar o seu caminho e paralelamente edificar o seu património”, parafraseando Fernando Távora no seu texto de prefácio, Memento, do livro “Esquinas do tempo”, do Grupo IF.
A minha proposta de intervenção nesta cidade-património é como que uma chamada de atenção aos transeuntes, colocando nos muros da cidade, antes, nos buracos existentes nos muros degradados da cidade, um estímulo à reflexão sobre o estado deste mesmo património, ou pelo menos um estímulo visual que fará com que as pessoas olhem duas vezes o espaço que as rodeia, o espaço que lhes pertence. Esses elementos de intervenção são corações de granito, pedra base que ergue a cidade e da qual são feitos os seus muros, os seus mapas.
O coração, sendo o primeiro órgão humano a formar-se e o último a morrer, é o símbolo da perenidade que contém em si a personalidade latente, o subconsciente profundo, o elemento regulador de todo o equilíbrio, é a célula secreta que testemunha a verdadeira existência da cidade, a história das suas construções e edificações. E não me refiro à história da arquitectura do Porto e aos seus espaços físicos, mas às “estórias” da cidade, às suas memórias, aos seus mapas ocultos, ao mapa das relações humanas, ao “tráfico de interesses, paixões, pensamentos, tudo aquilo que envolve a nossa experiência urbana”, Nelson Brissac-Peixoto, Arte e Cidade, in “Arte Pública”.
E mais do que em qualquer outro cenário, sendo o Porto a cidade Romântica dos bancos de jardim e das folhas de Outono, estes corações de granito são como suspiros reclamados, a atenção requerida.
Este projecto, tanto pelos seus aspectos formais como pelas problemáticas que levanta, remete-nos para questões de uma “arte pública” ou de uma “arte urbana”, com os seus graffittis e stencils que têm proliferado pelo mundo inteiro inclusive nas ruas do Porto.
Ambos os “géneros” artísticos têm como principal intenção acabar com o desfasamento entre arte e público, constituindo assim uma alternativa aos lugares sagrados da arte e seu carácter elitista, reduzido a um pequeno número de pessoas que estão habituadas a consumir cultura. A “arte de rua” é o meio mais eficaz de se dar a conhecer a produção artística ao público maioritário que não tem tempo ou oportunidade (cultural) para visitar uma galeria ou um museu. Mas a problemática do museu é bastante mais abrangente, tocando, a sua crítica, aspectos relacionados com as tradicionais questões de “aura” e hermetismo cultural. A “arte urbana” é também uma forma de crítica política e social, constituindo um diálogo directo e actuando também como forma de reacção ao excesso de informação das sociedades neo-liberais, funcionando como contra-cultura, como escreve Tristan Manco em “Stencil Graffitti”:”Street art is both an expression of our culture and a counterculture in itself.(...)As high-tech communication have increased, a low-tech reaction has been the recent explosion in street art. The street is a unique and powerful platform; a frontline on which artists can express themselves, transmitting their personal visions directly to the public at the same level as official messages.”
Mas este tipo de arte apresenta-se de uma forma efémera e experimental tendo como tempo de vida os próprios timings da cidade e o seu carácter mutante. E é neste aspecto que este projecto se distancia do graffitti. Antes de mais poderíamos chamar-lhe um “graffitti escultórico”. Esta intervenção pretende ser de alguma forma mais perene, mesmo porque a durabilidade da tinta de spray é indiscutivelmente menor que a do granito, que como a cidade do Porto nos mostra, se mantém resistente ao tempo.
Interessa-me nesta intervenção (bem como noutros trabalhos que tenho vindo a desenvolver) pensar as questões do eterno/efémero e das vidas “subliminares” na “estória” das coisas, dos lugares e daqueles que os habitam. Interessa-me, aqui, o ritmo da cidade, a sua cadência, qual ritmo cardíaco, com seus movimentos de expansão e contracção, como símbolo da própria música do Universo.


Mariana Bacelar
Junho/Julho 2003

Nenhum comentário: